Dos Preconceitos Com a "Dona de Casa"







Escrevo sobre as coisas que acontecem na vida, pois elas nos ajudam a entender esse mundo e a partir delas podemos reconstruir nosso conceitos... ou não. 
Eis que numa mesa com amigos e conhecidos, um deles diz: "e então, vamos conversar sobre carros ou sobre direito?" Isso porque estávamos ali entre homens que trabalham no ramo automobilístico,  suas esposas que são advogadas e eu da área das Artes, no momento "dona de casa". Me pronuncio: por que não podemos falar de Arte? E outra pessoa responde com um sorriso em grau de deboche: "da arte de ficar em casa?" Pronto, ele acabava de chegar exatamente onde eu queria, começamos então (todos) a discutir sobre a "arte de ficar em casa", de ser "dona ou dono de casa". No meio da conversa surgiu até o nome Amélia, a pessoa que o citou talvez nem saiba que esse termo já é até verbete de dicionário, mas provavelmente conheça o samba de  Ataulfo Alves e Mário Lago. Amélia há tempos deixou o posto de substantivo próprio e passou a ser substantivo comum, pois reconhecidamente se trata de uma "moça sem a menor vaidade" vivendo à sombra do marido, da família e da casa, tudo o que não sou, não pretendo ser e tenho certeza que muitas outras mulheres não são e nem pretendem ser. Outra pessoa diz: "ficar em casa. quanto retrocesso Rosane!O assunto foi tomando corpo e constatei que algumas das mulheres pensavam de forma mais machista que os homens, pois em suas falas ficava claro que "mulher de verdade" é aquela que sai de casa todos os dias pra encarar o trabalho lá fora, deixa os filhos na escola, com a babá ou etc, para poder sustentar a família de igual pra igual como o marido, e ainda chega em casa e encara seu terceiro turno: tarefas do lar, filhos... Sendo que a mulher que fica em casa "tem mais tempo livre". Percebi que estávamos na escala da categorização de pessoas. Se essas eram as "mulheres de verdade" as outras então seriam as de mentira? Mas a pior fala ainda estava por vir e veio também de uma mulher: "na verdade a mulher que fica em casa trabalha muito, até mereceria receber um salário por isso, mas acontece que fica """emburrecida"""", suas atividades passam a ser lavar, passar, cuidar dos filhos, fazer comida, ajudar com as tarefas da escola, bla, bla, bla e acabam esquecendo do mundo lá fora e até mesmo de si mesmas" e ainda acrescentou algo mais ou menos assim: "sem falar que ficam em casa as que são muito ricas e têm esse """privilégio""" ou aquelas que são muito pobres e não têm emprego ou qualificação para trabalhar fora". E a pessoa que deu início a esse enredo todo falou: "por isso que eu disse se íamos falar de carros ou direito", querendo dizer que: os assuntos de "casa" são desinteressantes. Estávamos em nove pessoas, quatro delas se posicionaram dessa forma, ainda bem que eu e as outras quatro nos posicionamos bem diferente disso. Perguntei aos mais entusiastas ao machismo (confesso que fiz isso de maneira esnobe)  se conheciam uma porção de livros que eu já havia lido, citei algumas autoras mulheres: Carolina Maria de Jesus, Alice Ruiz, Chimamanda Adichie, Adélia Prado, Marina Colasanti, Simone de Beauvoir, entre outras, perguntei se já tinham visto as exposições de arte que eu vi, se já tinham ido a tantos espetáculos de dança e teatro quanto eu fui, se já tinham parado pra olhar pro lado e ver que o mundo é bem maior do que imaginamos ou desejamos... arrematei: e pra aqueles que acham que quem fica em casa não trabalha, convido a passar um dia comigo, e já adianto: cedinho da manhã recolhemos os cocôs dos cachorros lá fora, que são muitos, grandes e fedidos, e a propósito fazemos isso com um sorriso no rosto!!
É importante tomar cuidado para evitar certas posturas de culpabilização feminina, nem todas as mulheres que se dedicam aos afazeres domésticos e outras atividades caseiras tem postura "machista", há muitas mulheres com carreiras executivas que ainda enxergam a vida através das lentes patriarcais, e acabam sendo mais submissas do que as "donas de casa", e ao contrário do muitos pensam:  cuidar dos filhos, da comida, das coisas da casa, não emburrecem ninguém, o que emburrece é manter vivo um conceito de que só se pode ser feminista, politizada, inteligente, dona de si quem trabalha fora, emburrece o desconhecimento de tudo o que envolve as tarefas domésticas e das atividades com os filhos pequenos. Há um envolvimento do tamanho do mundo e com o mundo ao se desempenhar todas essas funções.
Há algum tempo mulheres foram queimadas numa fábrica, mulheres não tinham o direito ao voto, nem aos estudos, muito menos ao trabalho fora de casa. Hoje já se conquistou parcialmente a igualdade de direito entre os sexos. No mercado de trabalho, na política, na economia, na sociedade, as mulheres são mais valorizadas, e as tarefas domésticas, que antes eram delegadas somente às mulheres passou a ser também tarefa dos homens, aplausos de pé para tudo isso, e sabemos o quanto ainda precisamos vencer preconceitos machistas e apequenados a respeito das mulheres. Já que se venceram tantas coisas por que não superamos esse novo/velho conceito de que se eu varrer a casa, cuidar dos filhos, fazer comida estarei traindo o feminismo, deixarei de ser ativista, ficarei burra, escolher ficar em casa (no meu caso por um tempo) não é retrocesso é um direito de toda e qualquer pessoa (homem ou mulher) que assim puder e desejar fazer. Acredito que o ativismo se dá de dentro pra fora, seja em qual esfera for, suas vertentes se estendem e se ampliam dentro ou fora de casa. Trabalhei fora desde meus 17 anos, estudei, criei, fiz muitas coisas, deixei marcas no mundo, nas pessoas... pretendo voltar, tenho projetos sendo executados nas madrugadas livres, estou com 44 anos, escolhi ficar um tempo em casa com os filhos, tenho um marido que trabalha fora e quando chega em casa trabalha mais ainda me ajudando com todas as atividades que envolvem uma casa, uma família, não sou obrigada a escutar: "que retrocesso Rosane!" Estamos num momento em que se discute muito a constituição familiar, essa defendida por muitos: papai (homem), mamãe (mulher) e filhinhos não é a única e nem nunca será, sou a favor da FAMÍLIA/AMOR seja ela composta de qualquer forma, gênero, classe, raça e principalmente construída com bases LIBERTADORAS. Lembram das mulheres que atearam fogo em seus sutiãs? Eu aqui da minha casa, apoio de corpo e alma essas labaredas, e por isso mesmo me dou o direito da ESCOLHA, estou aqui, por um tempo, formando cidadãos que respeitam a vida, o planeta, as pessoas... ao mesmo tempo estudo muito, leio muito, escrevo muito e preciso falar: estou aprendendo tanto quanto quando eu saía de casa todos os dias as sete horas da manhã. Não precisaria dizer isso mas quero dizer: meus filhos são muito inteligentes, têm posturas sensíveis frente a vida, são expressivos e felizes, meu filho menino brinca de casinha junto com minha filha menina e ele ajuda a cuidar das bonecas, limpa a casa, busca os filhos na escola, tudo isso brincando e APRENDENDO. Meus filhos me reconhecem como alguém admirável, que pinta, desenha, escreve, fotografa e cuida deles, dos bichos e da casa, sabe que trabalhei fora sempre, admiram tudo o que já fiz e sabem de tudo o que ainda pretendo fazer. Os dois observam o pai ajudando nas tarefas domésticas com a maior naturalidade, como deve ser, não há espanto algum ao vê-lo desempenhando papéis ditos como de "mulherzinha". Brincamos, lemos e contamos muitas histórias, cantamos, dançamos, escrevemos, escutamos, choramos, damos risada, pintamos, desenhamos, criamos, cuidamos uns dos outros, dos bichos, do pomar, da horta, vamos ao teatro, ao cinema, a mostras de arte, ao parque, limpamos, lavamos, cozinhamos, brigamos, pedimos desculpas, brigamos de novo, nos amamos, amamos os outros, trabalhamos... e assim vamos ateando fogo (aos sutiãs) de preconceitos e categorizações.






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